sábado, 3 de dezembro de 2022

São Inocêncio (Borisov): Os Caminhos da Providência de Deus na Vida Humana

 São Inocêncio (Borisov)

“porque vós sois, ó meu Deus, minha esperança. Senhor, desde a juventude vós sois minha confiança. Em vós eu me apoiei desde que nasci, desde o seio materno sois meu protetor; em vós eu sempre esperei” (Salmo 70: 5-6).

Tradução de Frank Pereira

Tatyana Yushmanova - Estrada. 2008-2010

São Davi já esteve em um estado infeliz. Inimigos ferozes o cercaram como abelhas em um favo de mel; flechas de calamidades penetraram em sua alma; ele se tornou objeto de reprovação para seus conhecidos; sua força estava exaurida; O próprio Senhor, aquele que fazia o bem a Davi, afastou-se dele – um estado terrível! Mas o homem justo não se cansa, não encontrando conforto no presente, ele se volta para o passado; traz à mente os muitos eventos diferentes que o acometeram; o pensamento passa por todas as idades de sua vida; volta ao seu início; busca o Senhor “que se retirou dele” em todos os vestígios de sua existência. E então a escuridão se dissipa! A providência não visível no presente se revela no passado; o sofredor que crê, vê que o Senhor o expôs mais de uma vez á grandes e ferozes problemas, mas sempre o salvou deles, que quanto mais amarga era a taça das tentações, mais era sempre recompensado com doçura.

A fé natural nos ensina que a Providência governa a vida de cada pessoa; e o Evangelho nos assegura que sem a vontade do Pai Celestial, nem um único fio de cabelo pode cair de nossas cabeças (Lucas 12,7). Mas quantas pessoas, que, tendo sido forçadas como Davi, a voltarem para suas vidas passada, poderiam encontrar nela os traços reconfortantes da Providência que os beneficiou? Ao contrário, entre os cristãos há um número considerável daqueles para quem a própria vida é uma fonte de dúvidas sobre a Providência. Por que muitos não encontram a Providência de Deus em suas vidas, quando de acordo com o ensino da fé e da razão, Ele governa a vida de todos? Este assunto vale como você mesmo vê, um estudo mais cuidadoso: pois, não sendo capazes de encontrar vestígios da Providência em nossas vidas, nós nos privamos do maior consolo em meio ao sofrimento, e estamos arbitrariamente sujeitos ao desânimo e às vezes ao desespero. Portanto, vamos dedicar nossos minutos presentes a pensar sobre os caminhos da Providência de Deus na vida humana.

Os caminhos de Deus são geralmente misteriosos, pois estão tão distantes dos nossos, quanto o céu está da terra (Isaías 55: 9) [...]. Visto que o homem foi criado livre, destinado a agir por conta própria, o Criador Sábio, para não violar essa vantagem, administra nosso destino de maneira invisível e imperceptível. A este respeito, acontece conosco o mesmo que com as crianças pequenas, de quem os educadores por vezes escondem a sua presença, a fim de lhes dar total liberdade para agirem segundo suas vontades.

A intimidade com a Providência favorece muito a qualidade de nossas vidas. O que são nossas vidas? É um pergaminho em constante evolução, preenchido com muitos escritos, do qual uma parte está sempre oculta. Frequentemente somos incapazes de compreender bem o significado das palavras que escrevemos; O que é a nossa vida? É um tecido em constante expansão, que contém inúmeros fios heterogêneos, cuja sua superfície é visível á todos, e os fundamentos visíveis á ninguém. É difícil determinarmos como esses fios, com toda a sua heterogeneidade são combinados em uma única composição; o mais difícil é apontar como o dedo invisível do Artista universal produz neste tecido, novas imagens e novas formas. O que é a nossa vida? Esta é uma coleção de fenômenos incontáveis e diversificados, que, como sombras animadas, se movem em torno de nossa consciência: surpreendem os sentidos, ocupam a imaginação, alimentam a mente, alegram ou entristecem o coração e logo desaparecem, deixando na memória um traço tênue. Somos todos espectadores e participantes destes acontecimentos; mas nenhum sábio ainda descobriu como isso acontece.

Com o mistério de nossas próprias vidas, o que é exigido daqueles que desejam ver traços da Providência? Em primeiro lugar, é preciso atenção constante e estrita à própria vida e à Providência de Deus, em segundo lugar, uma visão pura e verdadeira da própria vida e da Providência. Estas são as condições principais e necessárias: aquele que enxerga um pouco, e aquele que enxerga mal são iguais - ou eles não veem nada, ou veem muito pouco, ou estão errados. Essas condições necessárias frequentemente permanecem não atendidas.

Na verdade, quantas pessoas estão completamente desatentas com suas vidas! Como marinheiros imprudentes, permanecem satisfeitos com o navio de suas vidas a navegar turbulentamente ao longo da corrente do tempo, sem se dar ao trabalho de saber como muda a direção, que ventos usar, quais mares entrar, se estão em perigo ou onde há danos. Alguém pode pensar que essas pessoas em tudo confiam na Providência, como os nadadores que contam com um timoneiro experiente, e é por isso que são tão descuidadas. Não, eles não pensam absolutamente em Deus, nem mesmo pensam em si mesmos: execução mecânica de obras conhecidas, diversão, comunicação, jogos - esta é a ocupação deles! Hábito, vício, obstinação - essas são as suas regras! Conhecem algumas verdades da fé por ouvirem falar, pela presença ocasional, ou pela necessidade ao realizarem um pequeno número de ritos sagrados - esta é a religião deles! Julguem por si mesmos, pode-se esperar que essas pessoas encontrem traços da Providência em suas vidas?

Em algumas pessoas, pode-se notar grande atenção á suas vidas, mas, por outro lado, falta de atenção à Providência. Para essas pessoas, pensar sobre suas próprias vidas é o assunto favorito de estudo; eles não desconsideram um único caso; investigam o início e as consequências de todas as mudanças que acontecem com eles; extraem regras para seus comportamentos de tudo; conhecem a arte de viver em todos os seus segredos; podem contar e explicar suas histórias desde a infância: esta é a perfeição deles! Mas aqui está a desvantagem: eles nunca consideraram suas histórias em relação à Providência de Deus e ficariam surpresos ao ouvirem que sem Ele é tão pouco possível explicar a vida de cada pessoa, bem como a existência do mundo. De acordo com estas pessoas, tudo o que lhes acontecem é fruto de suas prudências, ou de jogo de paixões, ou questões de surpresas e de acasos; reconhecer que é impossível explicar qualquer coisa com essas razões, parece-lhes uma fraqueza vergonhosa da mente. Julgue por si mesmo, pode-se esperar que essas pessoas, desconfiadas e com medo da Providência, a encontraram em suas vidas?

“Mas existe”, alguém dirá, “pessoas muito atenciosas, que com toda a diligência das crianças, gostariam de enxergar e beijar a mão paternal da Providência; no entanto, elas estão privadas desta felicidade". Na verdade, existem tais pessoas, mas em relação a elas, existem outras razões: pode-se dizer afirmativamente que falta a essas pessoas uma visão adequada, fiel e pura da Providência. Em primeiro lugar, quando é que principalmente se voltam para os caminhos da Providência e procuram por consolo neles? Quando atingidos por alguma calamidade, quando não encontram conforto em ninguém, e nem em nada na terra, quando a mente se confunde, os sentimentos são escurecidos, o coração é dominado pela dor. Isto é, naqueles minutos em que muitas vezes se esquecem de si mesmos, que são considerados impróprios para pensar até em coisas corriqueiras, escolhem esses mesmos minutos para pensar nos caminhos da Providência! É verdade que em tempos de angústias, precisamos mais do que nunca de uma confiança reconfortante na Providência; mas, com a mesma certeza, somos menos capazes de segui-la. Quantos como Davi, que, estando no meio do fogo das tentações, teriam preservado toda fé? Quantos poderiam permanecer calmos, contempladores do amor paternal de Deus? Esta arte sagrada é fruto de uma longa experiência; não o temos, e ainda assim ousamos fazer o aquilo que é possível e útil para os experientes.

Tatyana Yushmanova - Harmonia

De antemão, é preciso acostumar-se a encontrar conforto na Providência. Quando a mente está limpa, os sentimentos são leves, o coração está em paz, é preciso então refletir sobre a vida e aprender com ela o destino da verdade de Deus. Esses momentos, em sua maior parte, seguem uma oração fervorosa: portanto a oração deve servir, por assim dizer, de ponto de partida para essas reflexões. Quem adquire habilidade nesta obra sagrada, como Davi, não cai nem mesmo entre as tentações. Sem isso, durante os desastres, é melhor buscar consolo nos outros, ao invés de confiar em sua própria reflexão sobre Deus e Sua Providência.

De que modo muitos ainda querem enxergar a ação da Providência em suas vidas? Normalmente de forma mais ou menos milagrosa: no âmbito de ações desses tipos, tudo o que é natural, simples e universal, é excluído antecipadamente. Como se a área da Providência Celestial consistisse apenas em milagres e coisas extraordinárias! Em necessidade, o que é fornecido para nós em socorro? Um anjo enviado do céu ou uma pessoa caridosa? O suficiente basta para nos ajudar.

Nos pássaros do céu, nos lírios do campo - tudo é natural, mas o Salvador os apresenta como um exemplo notável do cuidado paternal de Deus pelas criaturas e pelo homem (Mateus 6: 26 - 28). Como os anciãos israelitas (Êxodo 24, 10), ficaríamos satisfeitos se nos fosse dado ver nas aventuras de nossas vidas, os mais pequenos vestígios de Deus, que nos faz bem, entretanto, falaremos com Ele face a face - como Moisés e Davi. O Senhor já realizou muitos milagres por todos nós: Ele nos tirou da insignificância, nos redimiu pelo sangue de Seu Filho, nos santificou pelo Espírito Santo – e por esses milagres não pagamos nada ainda. Apenas um milagre do Senhor devemos esperar na vida, e o que ele espera de nós – é a correção do nosso coração, a renovação da nossa vida, a ressurreição espiritual.

Em quais outras aventuras os vestígios da Providência são mais procurados? Na felicidade ou infelicidade? Mas o que perguntar? Geralmente os infortúnios são apresentados como algo sombrio e terrível, sobre o qual é melhor não falar e nem pensar. Muitos foram honrados pelas ações da justiça de Deus – punindo nossas injustiças, para que pudessem constituir o dom do amor de Deus, e isso nem mesmo vem à mente [...] Mas o que fazer, quando estamos todos afetados por uma doença feroz? O Misericordioso Médico, por seu próprio amor, usa substâncias amargas. O que fazer quando obstinados, nos esforçamos muitas vezes por nossa própria destruição? O sábio Pai, por seu próprio zelo para o nosso bem, tropeça os pés de crianças imprudentes, para que não caiam no abismo.

O mesmo acontece em nossas vidas: o que nos parece difícil e lamentável pode ser a ação direta da providência de Deus por nós, um instrumento de Sua glória para nós e nossa prosperidade. Passou-se o tempo em que fomos todos criados apenas para a alegria, introduzidos a habitar no paraíso da doçura. Tendo semeado espinhos no caminho da bem-aventurança, não devemos resmungar se a Providência nos conduzir por este caminho; Glória a Ele e será bom para nós, se pelo menos não nos afastarmos Dele. Que sangrem os nossos pés: este é o caminho do nosso Salvador, que leva à pátria celestial. Nosso coração se tornou tão insensível, que a lei da verdade e da justiça não pode ser inscrita nele de outra forma, como em meio a tempestades e trovões (Ex. 19: 16-18). Estejamos atentos a essas vozes ameaçadoras, e nós, como os antigos israelitas, compreenderemos nelas a voz de nosso Senhor, nosso Deus, o Deus de nossos pais, que nos castiga em termos pequenos, a fim de ter misericórdia em termos grandiosos; veremos que os acidentes, dos quais nossos corações uma vez gemeram, se tornaram mais tarde, em um bem maior para nós e para nossos próximos; que a realização de muitos desejos, que tentamos com todas as nossas forças colocar em ação, mas sem sucesso, seria um mal para nós, e acarretaria consequências desastrosas; e que daquilo que nos afastamos, que encarávamos como dano e castigo, foi uma verdadeira bênção, que acabou por ser uma mudança em nossa maneira de pensar e na correção do nosso comportamento, vejamos e tenhamos temor á Providência, que nos beneficia!

Que outras deficiências possuem aqueles que buscam traços da Providência em suas vidas? Na maioria das vezes, limitando suas ações a eles próprios e em si mesmos – a benefícios temporários, à vida corporal. Que necessidade há de que nossa calamidade conhecida seja muito instrutiva para os outros e alguns, usando sua experiência, se volte para o caminho certo? Se nós mesmos não sentirmos nenhum benefício significativo com ela, então já é o suficiente para não vermos a Providência. [...] Será que a Providência de Deus entra em conformidade com nossas desatenções ao bem do nosso próximo e ao bem de nossas próprias almas?

Não basta limitarmos tudo a nós mesmos, não olharmos para as necessidades e benefícios dos outros, termos a pretensão de nos tornar o foco e o fim de toda a raça humana e de todos os eventos no mundo: o amor de Deus é superior a todos nós, e por isso abraça a todos os nossos irmãos, pelo infortúnio de um, ensina a outros, com a felicidade de alguns, edifica a todos, para que assim novamente nos unamos a todos, na qual incessantemente rompemos a unidade. Para nós, é suficiente preocupar-se mais com o corpo do que com a alma, agarrar-se loucamente ao temporal e não pensar no eterno. A Providência é eterna e sagrada, e, portanto, em todos os seus destinos ao nosso respeito, ela não significa tanto a felicidade temporária, em relação à eterna, nem tanto a prosperidade no corpo quanto o bem-estar no espírito. Deixe o homem exterior surpreender-se, que a carne sofra pelo menos como sofreu em Jó: se o espírito é capacitado, se o interior “que está oculto no coração do homem” (1 Pe 3, 4) cresce, então somos prósperos. Ai está uma imagem do julgamento da Providência!

Quanto, senão tudo, seria apresentado completamente diferente em nossas vidas, se aplicássemos constantemente esta forma sagrada de julgamento a ela! Quantas vezes, examinando nossas vidas, seriamos forçados a dizer a nós mesmos: "Deve ser assim, pois não fomos criados para a terra, mas para o céu!". Com tantos motivos que impedem de vermos em nossas vidas vestígios da Providência de Deus, é surpreendente que muitos não a vejam? Não veem, porque não conhecem bem suas vidas, não estão atentos a si próprios; não veem, pois param na superfície dos acontecimentos, não penetram em suas bases, onde se esconde a mão da Providência; não veem, pois querem enxergar quando o olhar se escurece, não da maneira que deveria, não na forma em que a Providência se manifesta; por fim, eles não veem, pois seus julgamentos sobre os caminhos da Providência é governado pelo orgulho e pelas paixões.

Libertemo-nos dessas deficiências ao julgar os caminhos de Deus, sigamos inabalavelmente as regras opostas; e logo aprenderemos por experiência própria que o Senhor “não está longe de cada um de nós” (Atos 17: 27). E como Ele pode estar distante? Ele não é onipresente? Sua sabedoria e onipotência podem permanecer sem ação em algum lugar? Apenas os deuses pagãos eram espectadores ociosos do destino humano: nosso Pai Celestial age incessantemente (João 5: 17). Apenas Baals e Veelphegor podiam dormir. Nosso Provedor "Não, não há de dormir, nem adormecer o guarda de Israel!" (Salmo 120: 4). Como Ele pode estar distante de nós? Ele não é nosso Criador? Ele não é nosso Pai? É assim que nos lembramos do Criador? Aquele que esquecemos que “Nele vivemos, nos movemos e existimos” (Atos 17: 28)? É assim que conhecemos o Pai, duvidando de Seu cuidado pelos filhos?

Os pais terrenos, como os humanos, são criaturas raivosas, no entanto, eles não dão pedras aos seus filhos em vez de pão (Lucas 11, 11): O Pai Celestial fará isso? Aquele que pode levantar um filho para si mesmo a partir de uma pedra (Mateus 3: 9)? Como Ele pode estar longe de nós, com tantas bênçãos! O que Ele não nos deu como garantia de cuidado por nós? Terra? – o homem a princípio ainda era seu rei. O céu? – há muito foi prometido como herança aos filhos fiéis. Anjos? – eles trabalham para nossa salvação. É necessário que Ele mesmo desça do céu, viva conosco, e até morra por nós, para nos assegurar? E está feito! O Filho de Deus desceu do céu, habitou entre os homens e, por amor, deu a vida por todos nós. Depois disso, quem pode duvidar do cuidado da Providência?

O próprio Senhor não hesitará em revelar os vestígios da Sua Providência paterna àqueles de vocês que, não fechando os olhos com dúvidas, se encontrem sempre prontos á beijar Sua sábia destra com reverência, não importando como ela revele sua presença, aberta ou secretamente, de acordo com a expectativa ou contra ela, com dons de amor ou misericórdia, com privação ou golpes de admoestação. Amém.

Pravoslavie. São Inocêncio (Borisov): Os Caminhos da Providência de Deus na Vida Humana. Texto Original Disponível em: https://pravoslavie.ru/104066.html

St. Inocêncio (Borisov). Arcebispo. Kherson e Tauride. 1857 Litografia

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