sábado, 3 de dezembro de 2022

São Inocêncio (Borisov): Os Caminhos da Providência de Deus na Vida Humana

 São Inocêncio (Borisov)

“porque vós sois, ó meu Deus, minha esperança. Senhor, desde a juventude vós sois minha confiança. Em vós eu me apoiei desde que nasci, desde o seio materno sois meu protetor; em vós eu sempre esperei” (Salmo 70: 5-6).

Tradução de Frank Pereira

Tatyana Yushmanova - Estrada. 2008-2010

São Davi já esteve em um estado infeliz. Inimigos ferozes o cercaram como abelhas em um favo de mel; flechas de calamidades penetraram em sua alma; ele se tornou objeto de reprovação para seus conhecidos; sua força estava exaurida; O próprio Senhor, aquele que fazia o bem a Davi, afastou-se dele – um estado terrível! Mas o homem justo não se cansa, não encontrando conforto no presente, ele se volta para o passado; traz à mente os muitos eventos diferentes que o acometeram; o pensamento passa por todas as idades de sua vida; volta ao seu início; busca o Senhor “que se retirou dele” em todos os vestígios de sua existência. E então a escuridão se dissipa! A providência não visível no presente se revela no passado; o sofredor que crê, vê que o Senhor o expôs mais de uma vez á grandes e ferozes problemas, mas sempre o salvou deles, que quanto mais amarga era a taça das tentações, mais era sempre recompensado com doçura.

A fé natural nos ensina que a Providência governa a vida de cada pessoa; e o Evangelho nos assegura que sem a vontade do Pai Celestial, nem um único fio de cabelo pode cair de nossas cabeças (Lucas 12,7). Mas quantas pessoas, que, tendo sido forçadas como Davi, a voltarem para suas vidas passada, poderiam encontrar nela os traços reconfortantes da Providência que os beneficiou? Ao contrário, entre os cristãos há um número considerável daqueles para quem a própria vida é uma fonte de dúvidas sobre a Providência. Por que muitos não encontram a Providência de Deus em suas vidas, quando de acordo com o ensino da fé e da razão, Ele governa a vida de todos? Este assunto vale como você mesmo vê, um estudo mais cuidadoso: pois, não sendo capazes de encontrar vestígios da Providência em nossas vidas, nós nos privamos do maior consolo em meio ao sofrimento, e estamos arbitrariamente sujeitos ao desânimo e às vezes ao desespero. Portanto, vamos dedicar nossos minutos presentes a pensar sobre os caminhos da Providência de Deus na vida humana.

Os caminhos de Deus são geralmente misteriosos, pois estão tão distantes dos nossos, quanto o céu está da terra (Isaías 55: 9) [...]. Visto que o homem foi criado livre, destinado a agir por conta própria, o Criador Sábio, para não violar essa vantagem, administra nosso destino de maneira invisível e imperceptível. A este respeito, acontece conosco o mesmo que com as crianças pequenas, de quem os educadores por vezes escondem a sua presença, a fim de lhes dar total liberdade para agirem segundo suas vontades.

A intimidade com a Providência favorece muito a qualidade de nossas vidas. O que são nossas vidas? É um pergaminho em constante evolução, preenchido com muitos escritos, do qual uma parte está sempre oculta. Frequentemente somos incapazes de compreender bem o significado das palavras que escrevemos; O que é a nossa vida? É um tecido em constante expansão, que contém inúmeros fios heterogêneos, cuja sua superfície é visível á todos, e os fundamentos visíveis á ninguém. É difícil determinarmos como esses fios, com toda a sua heterogeneidade são combinados em uma única composição; o mais difícil é apontar como o dedo invisível do Artista universal produz neste tecido, novas imagens e novas formas. O que é a nossa vida? Esta é uma coleção de fenômenos incontáveis e diversificados, que, como sombras animadas, se movem em torno de nossa consciência: surpreendem os sentidos, ocupam a imaginação, alimentam a mente, alegram ou entristecem o coração e logo desaparecem, deixando na memória um traço tênue. Somos todos espectadores e participantes destes acontecimentos; mas nenhum sábio ainda descobriu como isso acontece.

Com o mistério de nossas próprias vidas, o que é exigido daqueles que desejam ver traços da Providência? Em primeiro lugar, é preciso atenção constante e estrita à própria vida e à Providência de Deus, em segundo lugar, uma visão pura e verdadeira da própria vida e da Providência. Estas são as condições principais e necessárias: aquele que enxerga um pouco, e aquele que enxerga mal são iguais - ou eles não veem nada, ou veem muito pouco, ou estão errados. Essas condições necessárias frequentemente permanecem não atendidas.

Na verdade, quantas pessoas estão completamente desatentas com suas vidas! Como marinheiros imprudentes, permanecem satisfeitos com o navio de suas vidas a navegar turbulentamente ao longo da corrente do tempo, sem se dar ao trabalho de saber como muda a direção, que ventos usar, quais mares entrar, se estão em perigo ou onde há danos. Alguém pode pensar que essas pessoas em tudo confiam na Providência, como os nadadores que contam com um timoneiro experiente, e é por isso que são tão descuidadas. Não, eles não pensam absolutamente em Deus, nem mesmo pensam em si mesmos: execução mecânica de obras conhecidas, diversão, comunicação, jogos - esta é a ocupação deles! Hábito, vício, obstinação - essas são as suas regras! Conhecem algumas verdades da fé por ouvirem falar, pela presença ocasional, ou pela necessidade ao realizarem um pequeno número de ritos sagrados - esta é a religião deles! Julguem por si mesmos, pode-se esperar que essas pessoas encontrem traços da Providência em suas vidas?

Em algumas pessoas, pode-se notar grande atenção á suas vidas, mas, por outro lado, falta de atenção à Providência. Para essas pessoas, pensar sobre suas próprias vidas é o assunto favorito de estudo; eles não desconsideram um único caso; investigam o início e as consequências de todas as mudanças que acontecem com eles; extraem regras para seus comportamentos de tudo; conhecem a arte de viver em todos os seus segredos; podem contar e explicar suas histórias desde a infância: esta é a perfeição deles! Mas aqui está a desvantagem: eles nunca consideraram suas histórias em relação à Providência de Deus e ficariam surpresos ao ouvirem que sem Ele é tão pouco possível explicar a vida de cada pessoa, bem como a existência do mundo. De acordo com estas pessoas, tudo o que lhes acontecem é fruto de suas prudências, ou de jogo de paixões, ou questões de surpresas e de acasos; reconhecer que é impossível explicar qualquer coisa com essas razões, parece-lhes uma fraqueza vergonhosa da mente. Julgue por si mesmo, pode-se esperar que essas pessoas, desconfiadas e com medo da Providência, a encontraram em suas vidas?

“Mas existe”, alguém dirá, “pessoas muito atenciosas, que com toda a diligência das crianças, gostariam de enxergar e beijar a mão paternal da Providência; no entanto, elas estão privadas desta felicidade". Na verdade, existem tais pessoas, mas em relação a elas, existem outras razões: pode-se dizer afirmativamente que falta a essas pessoas uma visão adequada, fiel e pura da Providência. Em primeiro lugar, quando é que principalmente se voltam para os caminhos da Providência e procuram por consolo neles? Quando atingidos por alguma calamidade, quando não encontram conforto em ninguém, e nem em nada na terra, quando a mente se confunde, os sentimentos são escurecidos, o coração é dominado pela dor. Isto é, naqueles minutos em que muitas vezes se esquecem de si mesmos, que são considerados impróprios para pensar até em coisas corriqueiras, escolhem esses mesmos minutos para pensar nos caminhos da Providência! É verdade que em tempos de angústias, precisamos mais do que nunca de uma confiança reconfortante na Providência; mas, com a mesma certeza, somos menos capazes de segui-la. Quantos como Davi, que, estando no meio do fogo das tentações, teriam preservado toda fé? Quantos poderiam permanecer calmos, contempladores do amor paternal de Deus? Esta arte sagrada é fruto de uma longa experiência; não o temos, e ainda assim ousamos fazer o aquilo que é possível e útil para os experientes.

Tatyana Yushmanova - Harmonia

De antemão, é preciso acostumar-se a encontrar conforto na Providência. Quando a mente está limpa, os sentimentos são leves, o coração está em paz, é preciso então refletir sobre a vida e aprender com ela o destino da verdade de Deus. Esses momentos, em sua maior parte, seguem uma oração fervorosa: portanto a oração deve servir, por assim dizer, de ponto de partida para essas reflexões. Quem adquire habilidade nesta obra sagrada, como Davi, não cai nem mesmo entre as tentações. Sem isso, durante os desastres, é melhor buscar consolo nos outros, ao invés de confiar em sua própria reflexão sobre Deus e Sua Providência.

De que modo muitos ainda querem enxergar a ação da Providência em suas vidas? Normalmente de forma mais ou menos milagrosa: no âmbito de ações desses tipos, tudo o que é natural, simples e universal, é excluído antecipadamente. Como se a área da Providência Celestial consistisse apenas em milagres e coisas extraordinárias! Em necessidade, o que é fornecido para nós em socorro? Um anjo enviado do céu ou uma pessoa caridosa? O suficiente basta para nos ajudar.

Nos pássaros do céu, nos lírios do campo - tudo é natural, mas o Salvador os apresenta como um exemplo notável do cuidado paternal de Deus pelas criaturas e pelo homem (Mateus 6: 26 - 28). Como os anciãos israelitas (Êxodo 24, 10), ficaríamos satisfeitos se nos fosse dado ver nas aventuras de nossas vidas, os mais pequenos vestígios de Deus, que nos faz bem, entretanto, falaremos com Ele face a face - como Moisés e Davi. O Senhor já realizou muitos milagres por todos nós: Ele nos tirou da insignificância, nos redimiu pelo sangue de Seu Filho, nos santificou pelo Espírito Santo – e por esses milagres não pagamos nada ainda. Apenas um milagre do Senhor devemos esperar na vida, e o que ele espera de nós – é a correção do nosso coração, a renovação da nossa vida, a ressurreição espiritual.

Em quais outras aventuras os vestígios da Providência são mais procurados? Na felicidade ou infelicidade? Mas o que perguntar? Geralmente os infortúnios são apresentados como algo sombrio e terrível, sobre o qual é melhor não falar e nem pensar. Muitos foram honrados pelas ações da justiça de Deus – punindo nossas injustiças, para que pudessem constituir o dom do amor de Deus, e isso nem mesmo vem à mente [...] Mas o que fazer, quando estamos todos afetados por uma doença feroz? O Misericordioso Médico, por seu próprio amor, usa substâncias amargas. O que fazer quando obstinados, nos esforçamos muitas vezes por nossa própria destruição? O sábio Pai, por seu próprio zelo para o nosso bem, tropeça os pés de crianças imprudentes, para que não caiam no abismo.

O mesmo acontece em nossas vidas: o que nos parece difícil e lamentável pode ser a ação direta da providência de Deus por nós, um instrumento de Sua glória para nós e nossa prosperidade. Passou-se o tempo em que fomos todos criados apenas para a alegria, introduzidos a habitar no paraíso da doçura. Tendo semeado espinhos no caminho da bem-aventurança, não devemos resmungar se a Providência nos conduzir por este caminho; Glória a Ele e será bom para nós, se pelo menos não nos afastarmos Dele. Que sangrem os nossos pés: este é o caminho do nosso Salvador, que leva à pátria celestial. Nosso coração se tornou tão insensível, que a lei da verdade e da justiça não pode ser inscrita nele de outra forma, como em meio a tempestades e trovões (Ex. 19: 16-18). Estejamos atentos a essas vozes ameaçadoras, e nós, como os antigos israelitas, compreenderemos nelas a voz de nosso Senhor, nosso Deus, o Deus de nossos pais, que nos castiga em termos pequenos, a fim de ter misericórdia em termos grandiosos; veremos que os acidentes, dos quais nossos corações uma vez gemeram, se tornaram mais tarde, em um bem maior para nós e para nossos próximos; que a realização de muitos desejos, que tentamos com todas as nossas forças colocar em ação, mas sem sucesso, seria um mal para nós, e acarretaria consequências desastrosas; e que daquilo que nos afastamos, que encarávamos como dano e castigo, foi uma verdadeira bênção, que acabou por ser uma mudança em nossa maneira de pensar e na correção do nosso comportamento, vejamos e tenhamos temor á Providência, que nos beneficia!

Que outras deficiências possuem aqueles que buscam traços da Providência em suas vidas? Na maioria das vezes, limitando suas ações a eles próprios e em si mesmos – a benefícios temporários, à vida corporal. Que necessidade há de que nossa calamidade conhecida seja muito instrutiva para os outros e alguns, usando sua experiência, se volte para o caminho certo? Se nós mesmos não sentirmos nenhum benefício significativo com ela, então já é o suficiente para não vermos a Providência. [...] Será que a Providência de Deus entra em conformidade com nossas desatenções ao bem do nosso próximo e ao bem de nossas próprias almas?

Não basta limitarmos tudo a nós mesmos, não olharmos para as necessidades e benefícios dos outros, termos a pretensão de nos tornar o foco e o fim de toda a raça humana e de todos os eventos no mundo: o amor de Deus é superior a todos nós, e por isso abraça a todos os nossos irmãos, pelo infortúnio de um, ensina a outros, com a felicidade de alguns, edifica a todos, para que assim novamente nos unamos a todos, na qual incessantemente rompemos a unidade. Para nós, é suficiente preocupar-se mais com o corpo do que com a alma, agarrar-se loucamente ao temporal e não pensar no eterno. A Providência é eterna e sagrada, e, portanto, em todos os seus destinos ao nosso respeito, ela não significa tanto a felicidade temporária, em relação à eterna, nem tanto a prosperidade no corpo quanto o bem-estar no espírito. Deixe o homem exterior surpreender-se, que a carne sofra pelo menos como sofreu em Jó: se o espírito é capacitado, se o interior “que está oculto no coração do homem” (1 Pe 3, 4) cresce, então somos prósperos. Ai está uma imagem do julgamento da Providência!

Quanto, senão tudo, seria apresentado completamente diferente em nossas vidas, se aplicássemos constantemente esta forma sagrada de julgamento a ela! Quantas vezes, examinando nossas vidas, seriamos forçados a dizer a nós mesmos: "Deve ser assim, pois não fomos criados para a terra, mas para o céu!". Com tantos motivos que impedem de vermos em nossas vidas vestígios da Providência de Deus, é surpreendente que muitos não a vejam? Não veem, porque não conhecem bem suas vidas, não estão atentos a si próprios; não veem, pois param na superfície dos acontecimentos, não penetram em suas bases, onde se esconde a mão da Providência; não veem, pois querem enxergar quando o olhar se escurece, não da maneira que deveria, não na forma em que a Providência se manifesta; por fim, eles não veem, pois seus julgamentos sobre os caminhos da Providência é governado pelo orgulho e pelas paixões.

Libertemo-nos dessas deficiências ao julgar os caminhos de Deus, sigamos inabalavelmente as regras opostas; e logo aprenderemos por experiência própria que o Senhor “não está longe de cada um de nós” (Atos 17: 27). E como Ele pode estar distante? Ele não é onipresente? Sua sabedoria e onipotência podem permanecer sem ação em algum lugar? Apenas os deuses pagãos eram espectadores ociosos do destino humano: nosso Pai Celestial age incessantemente (João 5: 17). Apenas Baals e Veelphegor podiam dormir. Nosso Provedor "Não, não há de dormir, nem adormecer o guarda de Israel!" (Salmo 120: 4). Como Ele pode estar distante de nós? Ele não é nosso Criador? Ele não é nosso Pai? É assim que nos lembramos do Criador? Aquele que esquecemos que “Nele vivemos, nos movemos e existimos” (Atos 17: 28)? É assim que conhecemos o Pai, duvidando de Seu cuidado pelos filhos?

Os pais terrenos, como os humanos, são criaturas raivosas, no entanto, eles não dão pedras aos seus filhos em vez de pão (Lucas 11, 11): O Pai Celestial fará isso? Aquele que pode levantar um filho para si mesmo a partir de uma pedra (Mateus 3: 9)? Como Ele pode estar longe de nós, com tantas bênçãos! O que Ele não nos deu como garantia de cuidado por nós? Terra? – o homem a princípio ainda era seu rei. O céu? – há muito foi prometido como herança aos filhos fiéis. Anjos? – eles trabalham para nossa salvação. É necessário que Ele mesmo desça do céu, viva conosco, e até morra por nós, para nos assegurar? E está feito! O Filho de Deus desceu do céu, habitou entre os homens e, por amor, deu a vida por todos nós. Depois disso, quem pode duvidar do cuidado da Providência?

O próprio Senhor não hesitará em revelar os vestígios da Sua Providência paterna àqueles de vocês que, não fechando os olhos com dúvidas, se encontrem sempre prontos á beijar Sua sábia destra com reverência, não importando como ela revele sua presença, aberta ou secretamente, de acordo com a expectativa ou contra ela, com dons de amor ou misericórdia, com privação ou golpes de admoestação. Amém.

Pravoslavie. São Inocêncio (Borisov): Os Caminhos da Providência de Deus na Vida Humana. Texto Original Disponível em: https://pravoslavie.ru/104066.html

St. Inocêncio (Borisov). Arcebispo. Kherson e Tauride. 1857 Litografia

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Verdadeiro encontro com Cristo, verdadeira liberdade, verdadeira luta com paixões

Gabriel Bunge 

Preparado por Victor Kretsu.

Traduzido por Frank Pereira

- Padre Gabriel, hoje costuma-se falar sobre liberdade, e com certeza a geração mais jovem mesmo considerando-se cristã, entende mal: em espírito secular. Como adquirir as habilidades para saber diferenciar, e não substituir a liberdade em Cristo por algum tipo de liberdade externa?

A liberdade do cristão, a liberdade que Cristo nos trouxe, é de natureza religiosa. Jesus diz: “Todo aquele que comete pecado é escravo do pecado” (João 8:34); portanto, ele veio para nos libertar precisamente da escravidão do pecado.

Cristo se encarnou, apareceu no mundo para que a criação encontrasse seu estado original. Ou seja, nos foi dada liberdade para retornar ao estado do paraíso perdido. Isso é claramente visto na questão do divórcio. Os fariseus dizem que Moisés deu permissão para deixar suas esposas, e Cristo respondeu: “É por causa da dureza de vosso coração que Moisés havia tolerado o repúdio das mulheres” (Mateus 19: 7-8), esta é a lei para um homem caído. No início, não era assim, porque Deus cria uma mulher para um homem, e a liberdade cristã no casamento é um retorno à norma primária do paraíso, e o divórcio é a permissão dentro da estrutura do pecado. Este exemplo mostra como um cristão deve realizar a liberdade em sua vida.

Um cristão, se ele vive uma verdadeira vida cristã, torna-se um homem livre neste mundo e é uma pessoa assim, mesmo quando eles podem ser privados de sua liberdade civil, trancados na prisão, em campos... Um verdadeiro cristão não renuncia à sua fé e vimos perfeitamente como nos países onde reinava o domínio comunista, os confessores da fé continuavam sendo pessoas verdadeiramente livres, mesmo presos.

A liberdade civil garantida pelas instituições democráticas não deve ser negligenciada, porque inicialmente a democracia perante a lei assumia a igualdade, mas agora essa liberdade é entendida por pessoas que não têm os fundamentos cristãos da moralidade, como uma oportunidade de fazer o que quiserem, como uma espécie de liberdade irresponsável.

Um cristão, por exemplo, percebe a liberdade como uma responsabilidade para com Deus e por suas ações, mas aqueles que abusam da liberdade agem como se não respondessem a ninguém. O cristão aqui no Ocidente deve sempre lembrar que ele é livre, mas sob a graça, e que essa liberdade lhe é dada por Deus, e diante Dele, responderá por como a usou. Penso que a tarefa dos professores e padres ortodoxos hoje é educar os jovens sobre as fundações cristãs eles não precisam ocupar suas mentes com muita informação.

- Como entender que o encontro com Cristo aconteceu?

- É muito difícil dar uma resposta geral que seja adequada para todos. Muitas pessoas dizem que nunca encontraram Cristo, porque isso acontece em um determinado momento decisivo da vida! Isso pode acontecer no início da juventude ou cinco minutos antes da morte. O ladrão na última hora de sua vida encontrou seu Senhor... Eu posso responder a essa pergunta, guiado pela experiência pessoal, embora o monge deva falar de si o menos possível... Em geral, direi o seguinte: se uma pessoa encontra Cristo, ela tem uma experiência semelhante à experiência do apóstolo Paulo: sua vida está mudando decisivamente.

Há muita evidência de muçulmanos, sabe-se que muitos deles são convertidos ao cristianismo. Eu tenho uma coleção de autobiografias nas quais eles falam sobre sua própria conversão como resultado de tal encontro.

Observo que estes são fatos tocantes, portanto, toda evidência autobiográfica é muito importante para nós, para entender qual é a essência de nossa fé, porque todo o resto é secundário. É importante aceitar a Cristo como o verdadeiro Deus e segui-lo até o fim, até a morte.

- O que é arrependimento e o que não é, é simplesmente o reconhecimento dos pecados?

- Tudo tem sua própria forma secular. Por exemplo: akedia (desânimo) tem um lado religioso e um lado secular: depressão.

O desânimo, como todos os outros hábitos apaixonados, tem um efeito transcendental, isto é, afeta não apenas nossos relacionamentos com as pessoas, mas também destrói o relacionamento entre nós e Deus. O pecado como um todo destrói o relacionamento do homem e o Criador. E o verdadeiro arrependimento consiste no reconhecimento dos pecados diante do Senhor, após o qual começa o retorno do homem ao seio de Deus. Santo Agostinho diz que o pecador está de costas para Deus e que ele deve se voltar para encará-lo. Este é o retorno do filho pródigo ao pai.

A forma secular de "arrependimento" é apenas uma admissão de que você fez algo errado e você apenas diz: "Desculpe, violei a regra aceita" - isso é tudo. Isso não é arrependimento; neste caso, você não chorará como um pecador, que realizou e reconheceu seus pecados, lamentando por causa de sua queda.

Há alegria espiritual e diversão secular. Monges, por exemplo, usavam um tipo de humor. Nesse caso, a palavra usada com mais frequência é halyentiseste, que significa "brincar com um ente querido em um sentido amigável, muito delicadamente, sem ofender, mostrando que seu lado fraco está sempre de forma delicada". Vamos relembrar a famosa história com o monge Antônio: um caçador viu como ele se divertia com seus monges e ficou indignado. Santo Antônio, é claro, percebeu isso, chamou-o e disse: “Coloque uma flecha no seu arco e puxe-o.” Ele fez isso. O velho ordenou: "Estique!" O caçador respondeu: "Não, se eu esticar demais, o arco quebrará". Santo Antônio disse: “E na obra de Deus, se sobrecarregarmos as forças dos irmãos, eles logo ficarão aborrecidos.” Este é um exemplo de diversão e humor, não degradante, não tirando sarro.

- Na tradição ascética ortodoxa, muita atenção é dada à oração, e especialmente a de Jesus. Como no mundo moderno alguém pode se tornar participante dessa tradição ascética?

- Essa tradição de ação inteligente é muito antiga, seu surgimento não está documentada, mas as fontes também podem ser encontradas nas páginas do Evangelho no episódio com o paciente, que se volta para Cristo com uma breve oração: "Jesus, filho de Davi, tem piedade de mim". Santo Agostinho sabia que os monges do Egito, onde nasceu o monaquismo, aderiam à tradição de fazer pequenas orações, e as chamava de relâmpago rápido, como uma lança.

Inicialmente, as formas de oração eram diferentes, havia toda uma gama de variações, mas sempre foi baseada no chamado de Jesus Cristo. Essa oração é um ato de humildade, por meio dela a pessoa reconhece sua necessidade da ajuda de Deus: que é uma confissão de fé. Esta oração é muito antiga, remonta aos tempos apostólicos.

Essa oração é um tesouro que sempre esteve na Igreja, e todo cristão que deseja pode aprender essa prática entrando em contato com uma pessoa com a experiência de um adorador. O famoso livro “As Histórias de Frank de um Andarilho ao Pai Espiritual” fala da busca por essa oração e de alguém que possa ensiná-la. Sabe-se que hoje [essa oração] não é apenas uma ocupação específica de monges, mas também de todos os crentes.

Quando, por exemplo, eles me pedem para abençoa-los na oração de Jesus, não recuso, e aconselho como e quantas vezes devem realiza-la, porque a oração deve estar em harmonia com a vida cotidiana. Cônjuges que têm filhos, trabalham, etc., orarão de uma maneira completamente diferente dos monges que vivem em uma caverna no Monte Athos. O mais importante não é quantidade, mas qualidade.

Você não precisa orar como os fariseus, mas ore como um publicano que não sabia como estar diante de Deus: "Tenha misericórdia de mim, um pecador". O fariseu "apresentou" diante do Senhor suas obras, mas não teve um coração tocado. É muito importante a disposição interior do cristão durante qualquer oração, não apenas a oração de Jesus.

- O Rev. Isaac, o Sírio, na 58ª Palavra, diz que é melhor afastar a paixão lembrando a virtude do que a resistência, porque ela pode ser impressa na mente e prejudicar o espírito. A 30ª Palavra diz que é melhor afastar os pensamentos com oração, e a pessoa que faz isso realmente aprendeu a sabedoria, e não se deve contradizer os pensamentos, porque a mente será prejudicada... Como lidar com paixões e pensamentos? Afinal, esta é uma parte muito importante da austeridade cristã.

- É necessário não apenas focar na luta contra a luxúria, mas também elevar as virtudes opostas. Lutar, por exemplo, diretamente com raiva é muito difícil. Como regra, quando você começa a extinguir um lampejo de raiva, ela já se expande e se espalha bastante. Portanto, para manter a raiva sob controle, é preciso cultivar constantemente a mansidão em oposição à raiva. Não quero anunciar meus livros, mas em um deles descrevi o mecanismo de ação da paixão da raiva e a prática de cultivar a virtude da mansidão. 

A mansidão não é uma virtude dos fracos, pelo contrário, nas Escrituras é uma virtude de pessoas fortes, como Moisés e Davi. Penso que na luta contra a raiva é melhor recordar essas imagens bíblicas, em vez de morder a língua. E, é claro, é muito importante recorrer a Deus com oração. Esta regra é aplicável para se livrar de todas as paixões.

- Em um mundo onde há muitas influências diferentes, é muito difícil manter sua identidade ortodoxa, também há a tentação de substituí-la por outra coisa. Quais são as maneiras de preservar uma identidade ortodoxa autêntica?

- Esta pergunta é frequentemente feita a mim, especialmente aqui no Ocidente. No meu mosteiro, aceito muitas pessoas, principalmente nativas da Ucrânia, na Moldávia. E recentemente me fizeram a mesma pergunta. Um grande número de mães forçadas a criar seus filhos no Ocidente estão preocupadas, porque elas não vivem em um ambiente ortodoxo. Mas não devemos esquecer que, no início de seu caminho a Igreja existia nessa mesma situação, e ao mesmo tempo, não apenas mantinha sua autenticidade, mas também ganhou em grande parte. De fato, antes do edito de Constantino, os cristãos eram obrigados a viver em uma sociedade hostil a eles, não apenas pelas autoridades, mas também por pessoas comuns. Eles tinham 1.001 razões para renunciar à fé cristã, mas os verdadeiros amantes de Deus não o fizeram.

Recentemente, tive a sorte de ler várias vidas descrevendo os ascetas dos tempos da URSS. É muito interessante conhecer esses testemunhos de fé, por exemplo, Andronicus (Lukas), quando ele foi enviado para o campo, ele distribuiu tudo aos criminosos que cumpriam suas sentenças e ajudou a todos. Vendo isso, os prisioneiros começaram a defendê-lo.

A liturgia era realizada sem livros, os anciãos sabiam tudo de cor. Li com grande interesse essas histórias do período comunista e fico surpreso com o fato de a fé não ter desaparecido e, além disso, ter reavivado após 70 anos. Até o monaquismo poderia sobreviver sem as paredes do mosteiro.

Lendo e estudando os exemplos de seus pais e avós, é importante entender como você pode manter sua fé neste mundo secular e hostil. Portanto, a Ortodoxia não é uma idéia abstrata, mas algo profundo na vida de todas as pessoas. E se estiver enraizada em nós, nada pode nos seduzir.

- Obrigado por dar uma entrevista aos leitores do portal Vida Ortodoxa. Pedimos suas orações pela Ucrânia.

- Rezamos sempre pela Ucrânia!

Pravoslavie. Gabriel Bunge: SOBRE UM VERDADEIRO ENCONTRO COM CRISTO, VERDADEIRA LIBERDADE, VERDADEIRA LUTA COM PAIXÕES. Original em: https://pravoslavie.ru/94307.html

Gabriel Bunge: Estudo Teológico, Vida Espiritual e a Rússia Hoje

 Gabriel Bunge

Traduzido por Frank Pereira

Entrevista conduzida por Olga Bogdanova com a ajuda de Vasily Tereshchenko

Pe. Gabriel, o que para você é o mais valioso na comunicação com outra pessoa?

Isso depende da profundidade da comunicação. Falando de modo geral, é maravilhoso quando as pessoas conseguem encontrar uma linguagem comum umas com as outras. Se formos falar de outros aspectos da comunicação, então o mais valioso é quando você pode encontrar a imagem de Deus em outra pessoa. Todos nós fomos criados à imagem de Deus; no sentido absoluto, esta imagem é Cristo. Se pudermos encontrar essa imagem em outra pessoa, isso se tornará a coisa mais valiosa que pode haver na comunicação; esta também é a base da verdadeira amizade. Ou seja, não apenas algum tipo de simpatia humana natural, mas o reconhecimento da outra pessoa como sendo a imagem de Deus.

Com que frequência, e com que regularidade, você lê a Sagrada Escritura?

Comecei a ler a Sagrada Escritura muito cedo, muito antes de entrar no mosteiro. Mais tarde, portanto, me pareceu perfeitamente natural que no mosteiro lêssemos as Escrituras diariamente, tanto durante os serviços divinos quanto em nossas celas. Já sou monge há cinquenta anos. Agora, tendo simplesmente memorizado muitos textos, muitas vezes os contemplo. Isso permite que um significado mais profundo se abra, acima do que pode ser obtido durante uma simples leitura. Você pode ler um texto 100 ou 1.000 vezes e, então, pode lê-lo uma vez e, de repente, perceber que nunca realmente o leu uma única vez, porque uma nova profundidade se abriu para você, como nunca antes. O texto da Sagrada Escritura é como um poço insondável.

Está dito que é necessário ler a Sagrada Escritura com uma predisposição intima. Este é um bom conselho?

Naturalmente! Certos Santos Padres dizem que só se pode ler o Evangelho de joelhos. Este livro não deve ser lido como um texto comum. Ou seja, se alguém lê a Bíblia como um livro comum, a revelação não será percebida adequadamente.

O que, especificamente, é essa disposição intima? Como isso pode ser explicado para alguém que está apenas começando a ler a Bíblia?

Essa disposição é o forte desejo de ouvir a palavra de Deus, e não simplesmente uma curiosidade ou desejo de adquirir conhecimentos. Claro, o estudo formal de textos bíblicos - estudo filológico, por exemplo, ou outros tipos - tem sua base.  Mas a certa altura é preciso deixar tudo isso de lado e receber a palavra de Deus como ela é.  A Bíblia se explica. Como se costuma dizer, a luz não precisa de outra luz para ser o que é.

Em nossa tradição eclesiástica, pessoas que se ocuparam da teologia foram aquelas que tiveram uma experiência pessoal de comunhão com Deus e de oração. Mas, como alguém pode ser um estudante de teologia hoje, seja em uma igreja ou instituição secular? Afinal, o sistema educacional e o calendário acadêmico não envolvem de forma alguma ter um instrutor espiritual, por exemplo, que possa transmitir a experiência pessoal com Deus ou conduzi-la.

Alguém que estuda teologia sem vida espiritual não entenderá nada. No Ocidente, existem professores de teologia que não são crentes; há até padres que não acreditam em Deus, que veem seu ministério como um trabalho, uma forma de ganhar dinheiro. Isso pode parecer improvável, mas tenho evidências de que é realmente o caso. Glória a Deus, eu mesmo nunca encontrei pessoas assim, mas meus amigos têm a experiência de lidar com elas. Bispos que conheço dizem que existem padres que perderam a fé e servem apenas porque precisam ganhar a vida e sustentar suas famílias. Este é o fim.

Para que isso não aconteça, é preciso aprender com os Santos Padres. Eles eram altamente educados em termos seculares: eram retóricos e filósofos que conheciam literatura e línguas. Mas esse conhecimento era apenas um instrumento para eles. Os próprios Padres levaram vidas espirituais extremamente profundas.

A presença de conhecimento de forma alguma implica que você entenderá corretamente as Escrituras; a questão é como fazer uso desse conhecimento. Sabemos que a teologia ariana foi baseada inteiramente na Bíblia. Quando estava tentando Cristo, Satanás citou a Sagrada Escritura - isto é, ele conhecia esses textos, citando-os não para penetrar em seu significado, mas para torcê-los e virá-los do avesso. O melhor meio de abusar das Escrituras Sagradas é citar apenas metade dos versículos, e não versículos completos.

Alguém pode aprender a orar? Por um lado, dizem que é preciso aprender; e, por outro, dizem que a oração é um dom de Deus e, portanto,  não se pode adquiri-la especialmente por sua própria vontade.

Em seu tratado sobre a oração, Evagrio Pôntico diz que Deus concede a oração a quem a pede. Se alguém não pedir, não receberá. O melhor professor de oração é a própria oração.

Você é monge há cinquenta anos e eremita há trinta e dois. Você agora veio para a Rússia, para Moscou. Quais são suas impressões sobre o que você viu?

A primeira coisa que vejo é uma mudança incrível na sociedade.

Eu conheço a Igreja da Alegria de Todos os Que Estão Tristes na Rua Bolshaya Ordynka desde 1968. A igreja então estava em péssimas condições; parecia uma lata. Passei a Páscoa aqui naquele ano, quando era um jovem monge. Era impossível entrar na igreja, porque as mulheres se amontoavam e se acotovelavam tanto que tive que sair. Durante a procissão surgiram dez ou quinze bêbados e começaram a insultar e a ridicularizar os fiéis, de modo que a procissão teve que correr a galope pela igreja.

Nos últimos anos, tenho vindo a Moscou com mais frequência, e  a esta igreja, e vejo que a igreja foi ressuscitada e restaurada. Nos dias de semana - por exemplo, eu estava aqui em uma terça-feira - a igreja fica cheia de fiéis. E na noite da Páscoa até o trânsito pára para permitir a passagem da procissão.

Para mim, as igrejas e os mosteiros restaurados são os símbolos do renascimento da Rússia. Por enquanto, esses são pontos individuais no mapa, mas esses exemplos demonstram que o povo russo é capaz de realizar muitas coisas quando se dedica a isso. Existem muitos mosteiros na Rússia; acreditamos, esperamos e confiamos que o sangue dos mártires é a semente do futuro da Igreja Russa.

Acho que esses pontos no mapa, falando figurativamente, vão se alargar. Como resultado, a sociedade pode se recuperar. E a recuperação é necessária, porque na Rússia não houve apenas a destruição de igrejas, mas, o mais importante, houve destruição moral. Eu não ficaria surpreso em saber que os hooligans dos anos 60 frequentam agora esta igreja.

Pravoslavie. ESTUDO TEOLÓGICO, VIDA ESPIRITUAL E A RÚSSIA HOJE: UMA CONVERSA COM PE. GABRIEL (BUNGE). Fonte:  https://pravoslavie.ru/57465.html

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Amor no Casamento

 Metropolita Atanásio de Limassol

O período pré-matrimonial deve se tornar um momento de estudo cuidadoso, pode-se dizer que se trata de um teste do outro, e da nossa relação com ele, para que no futuro não reclamemos com pesares: "Eu não sabia, não entendia, pensei que ele (ela) mudaria". A nossa intenção de se casar deve ser muito séria, porque o casamento é uma promessa, é o nosso compromisso com Deus: de seguir o caminho da salvação com o outro. Afinal, o primeiro e mais importante objetivo do casamento é a nossa salvação, nossa deificação, nossa santificação e depois disso, nossa felicidade, filhos e tudo mais. [...] Neste momento precisa-se especialmente ter uma mente sóbria e raciocinar de modo temperante sobre a outra pessoa. Livre de paixões e sensualidades, nossa escolha deve ser objetiva e santificada.

Antigamente, o noivado era um período em que os noivos podiam se comunicar oficialmente e conhecer um ao outro perante Deus, a sociedade, entes queridos e parentes. Esta cerimônia foi uma consequência das condições sociais, afinal, antes não era tão fácil as pessoas se encontrar, passar momentos juntas, se comunicar e se conhecer. Assim, o noivado foi uma espécie de bênção e de permissão de encontro entre um rapaz e uma garota, para se olharem mais de perto, e verificar o encaixe para a vida a dois.

Nos tempos antigos na Igreja Ortodoxa, o sacramento do casamento era realizado durante a Divina Liturgia, porque a finalidade do casamento, como a finalidade de todos os outros sacramentos, é alcançar o Reino dos céus. Portanto, o sacramento do Batismo, o sacramento do Casamento e outros sacramentos eram realizados junto com a Divina Liturgia.

[...] Assim, um homem e uma mulher aparecem no templo como indivíduos livres, e ficando noivos, fazem a promessa de que tentarão estudar um ao outro com seriedade, sobriedade, santidade e castidade, a fim de entenderem se podem se unirem em casamento. Além disso, eles fazem uma promessa séria a Deus de que esse passo não é um tipo de decisão frívola ou superficial. A Igreja testifica que essas duas pessoas estão comprometidas uma com a outra. Ambos agora têm um compromisso um com o outro. Um respeita o outro, não brinca com os sentimentos do outro, agora você não pode simplesmente pegá-lo e jogá-lo fora de sua vida.

[...]


No amor, você não pede ao outro para amá-lo, mas você mesmo que se esforça para amar o outro. Se você disser ao seu noivo ou noiva: “Eu quero que você me ame muito e nunca ame ninguém assim. Se você não pode me amar assim, então é melhor nos separarmos" – tal comportamento indica uma doença, uma idéia equivocada de amor. Afinal, o amor é composto de forma diferente. Somente quando você ama outra pessoa, é que pode se sentir realizado e satisfeito. E se o outro também te ama, então é ótimo! Mas se você só sente satisfação quando é amado, isso é um egoísmo extremo. Para onde isso leva? Você consome o outro, você o destrói. 

“O amor não procura o que é próprio” – diz o apóstolo Paulo. Existe nobreza no amor. Quando você ama alguém, o outro se sente livre, sente que existe como pessoa. Mas se você sufocá-lo com seu amor, então ele morrerá, ele não resistirá. É como uma flor, por exemplo, que precisa ser regada uma vez por semana com um copo d'água. E você rega todos os dias, pensando que isso a deixará mais verde e vibrante. Mas na verdade, essa flor murchará com essa quantidade de água logo nos primeiros dias. No amor, é o mesmo. O amor respeita a personalidade da outra pessoa [...] A outra pessoa não tem que ficar sem fôlego, quebrar-se em pedaços para amá-lo, porque você a ama.

Por exemplo, imaginemos a seguinte conversa: “Eu quero que você me ame absolutamente, eu e mais ninguém. Se você não puder me amar assim, me fale sobre isso, para que então eu possa ir e encontrar outra pessoa que possa me amar desse jeito”. O que acontece ai é o seguinte: não importa se eu te amo, só importa se você me ama. Tal relacionamento é um desastre, é um orgulho doloroso. A questão não é se o outro ama você, mas se você o ama!

O amor pode ser imperfeito? O amor está em cada pessoa, mas muitas vezes esse amor é imperfeito, porque o amor perfeito é o amor altruísta, é o amor de Deus, que é o dom do Espírito Santo. O amor, antes de tudo, não busca a si mesmo, não envergonha o outro, não oprime, não pode ser infeliz ou egoísta. O amor perfeito dá à outra pessoa total liberdade de existência. É assim que o Senhor nos ama. Ninguém nos ama mais do que o Senhor. Veja como o Senhor nos trata, com que generosidade, como se Ele nem existisse. Deus, que apesar de ter o poder para fazer de nós o que quiser, nos deixa absolutamente livres, com ternura e delicadeza nos chama para si, levando-nos à ternura com o seu amor.

O mesmo se aplica ao amor dos pais pelos filhos, dos filhos pelos pais, o amor entre irmãos ou entre amigos: o amor em todas as suas manifestações deve ser perfeito, desinteressado e generoso. No casamento, o amor perfeito não significa de forma alguma que a outra pessoa não possa dar um passo sem a sua aprovação [...]

Devemos procurar adquirir o amor perfeito, para isso é necessário fazer um trabalho interior, tornar-nos humildes, porque só numa pessoa humilde pode surgir o amor perfeito. Uma pessoa orgulhosa ama incorretamente, de forma egoísta, procurando apenas a si mesmo. Portanto, para aprender a amar corretamente, a cura espiritual é necessária, para ficarmos bem, adquirirmos a humildade, e para que as pessoas ao nosso redor também tenham saúde.

[...] Quando Cristo está presente, então há paz em nós. Quando não há Cristo na vida de uma pessoa, mesmo que tudo esteja calmo e quieto, não há sentido em tudo isso, não há paz na alma dessa pessoa. “Pois Ele é a nossa paz” (Efésios 2:14), disse o Apóstolo Paulo. E vice-versa, quando Cristo está dentro de nós, mesmo quando há escuridão contínua, guerra e destruição ao nosso redor, mesmo quando caímos e morremos, a paz ainda viverá em nós. [...]

Vou contar uma história da vida monástica, pois o mesmo acontece no monaquismo. Certa vez, um jovem, muito educado e bem-sucedido segundo os padrões do mundo, veio ao sagrado Ancião Ephraim de Katunaksky, e disse: "Geronda (ancião, mais velho), vim aqui para encontrar consolo e pretendo me tornar um monge". O Padre Ephraim era um ancião muito rígido, e disse em resposta: “Você cometeu um erro desde o início. Você veio aqui para se confortar? Erro! Você deveria ter vindo me confortar [...] No monaquismo, você conforta o mais velho, e não vice-versa”.

Não basta apenas um conhecer o outro, se amarem e viverem felizes, esse não é o objetivo, essa não é a felicidade. O propósito do casamento é a salvação: para que nós como indivíduos, possamos ser salvos, para que não percamos o contato com Deus entre as coisas que nos rodeiam, e que pesam sobre nós. A salvação é o objetivo principal que deve antecipar qualquer movimento. [...] Ter filhos é um dos objetivos importantes, sagrados e dignos do casamento, mas não o mais importante. O objetivo principal é justamente cumprir “tudo quanto se pede para salvação”. Por exemplo, um casamento sem filhos não pode ser chamado de imperfeito ou infeliz, quando por meio dele uma pessoa encontra o verdadeiro caminho para o amor de Deus.

Não importa se uma pessoa é casada, solteira, divorciada ou viúva. O sucesso de sua vida não depende de circunstâncias externas. Afinal, uma pessoa pode não encontrar alguém, ou chegará o momento em que o casamento termine: um dos dois deixará a vida terrena, ou por algum motivo o casamento entre em colapso. Tudo isso não significa que a vida dessa pessoa tenha falhado. O sucesso ou o fracasso de nossas vidas não depende em nada do casamento ou da presença de filhos, mas sim do quanto conseguimos nos unir a Deus. Se tivermos sucesso quanto a isso, então nossas vidas serão boas, mesmo em qualquer situação que estivermos.

A palavra afinidade (ομόνοια - em grego) significa ter uma mente em comum, ou seja, pensar de modo semelhante, falar a mesma língua, ter interesses comuns, um vetor comum, concordar uns com os outros. No entanto, “afinidade” não significa de forma alguma uma completa semelhança. É possível existir opiniões diferentes, e muitas vezes isso é até necessário. Você pode amar outra pessoa, mas ter uma mentalidade completamente diferente. Uma vez que cada pessoa é única, é impossível identificar a si mesmo em outra. É errado exigir que outra pessoa tenha pontos de vistas semelhantes aos meus, para alcançar uma mesma opinião. A beleza do amor reside precisamente no fato de que, quando amo outra pessoa, ela tem total liberdade para ter uma opinião completamente diferente da minha.

[...]O ensinamento da Igreja diz que cada pessoa é um fenômeno excepcional e único, ou seja, antes de mim, eu não existia, e também no futuro eu nunca aparecerei em lugar nenhum, em nenhuma outra vida. Nunca houve outra pessoa como eu e nunca existirá! Isso é incrível! O homem é único porque Deus é único. Este fato dá sentido à nossa existência. Portanto, não somos todos impessoais, não somos apenas algum tipo de multidão, mas cada um de nós possui seu próprio nome. O Senhor deu um nome para cada fenômeno, até mesmo aos animais: lembre-se de como o Senhor instruiu Adão a inventar nomes a todos os animais. [...]

Para que duas pessoas com opiniões diferentes possam viver em paz, é necessário aprender a ceder. Um deles decidirá ficar quieto, e deixar a vontade do outro, porque se um insistir, haverá um alvoroço. Se você puder fazer isso por amor ao próximo, faça, não tenha medo, você não perderá nada, pelo contrário, você ganhará! Isso não é de forma alguma uma manifestação de fraqueza, porque só uma pessoa forte sabe ceder com generosidade. Uma pessoa fraca está constantemente tentando impor sua vontade e pensa com horror em ceder. O forte diz: “Faça como você sabe! Que seja como você quiser!". Há grande força espiritual nessas palavras. "Meu irmão, faça o que você acha que é certo, eu só ficarei feliz". Se uma pessoa consegue atingir esse estado de espírito, então ela se torna absolutamente livre do medo e do espírito de desconfiança. Além do fato de tornar a si próprio livre, ela também torna os que o cercam livres.

Mas alguém dirá que não quer ser usado... Precisamos evitar esse medo – de estarmos sendo usados, de sermos feridos, de sermos enganados. Evite esses pensamentos, liberte-se deles. Já que a outra pessoa é a imagem de Deus e por natureza já é dotada de algumas virtudes, ainda que as expresse à sua própria maneira, mais cedo ou mais tarde ela responderá à sua generosidade. E mesmo que não responda, você não perderá nada, e ainda ficará melhor. [...] Um amante não tem medo de nada, ele confia na outra pessoa. Mas quando começamos a ter medo, ficamos desconfiados nas mais diversas situações que conhecemos. Nosso doloroso egoísmo, nossa vulnerabilidade, nossa ganância, nosso amor errado levam à desconfiança e ao medo. O amor perfeito se comporta de uma maneira completamente diferente. Afinal, um amante com amor perfeito não vai suspeitar, temer ou entrar em pânico [...]

[...] O casamento é uma etapa maravilhosa na vida de uma pessoa, graças à qual ela pode crescer espiritualmente e melhorar-se em Cristo. No entanto, o casamento não é a única maneira de melhorar-se. Onde quer que uma pessoa se encontre, ele pode fazer desse tempo de vida um momento de aperfeiçoamento espiritual. É possível transformar em vida eterna o que você é. Cristo não se limita apenas ao casamento ou monaquismo. De modo nenhum. Seja quem for, quaisquer que sejam as circunstâncias em que alguém se encontre, tem-se a oportunidade de salvação. Só é preciso santificar o lugar onde se está. Se você é casado, santifique seu casamento, se você for solteiro, santifique seu celibato, se você for um monge, santifique sua residência monástica. Esta é a beleza da presença de Deus, que nos torna livres e nos permite viver livremente em Cristo.

[...] Um “servo de Deus” não é um escravo, como muitas vezes interpretamos esta expressão, mas um “servo de Deus” é uma pessoa que se submeteu ao amor de Deus e se tornou livre em Cristo Jesus. Ele se libertou do pecado, porque é o pecado que nos torna escravos, e Cristo nos liberta dele. Somos filhos de Deus e servos de Deus, quando transferimos livremente nossa alma e nosso corpo a Deus, e o Senhor na medida de nossa dedicação, nos liberta das paixões e dos pecados. [...]

As pessoas costumam me perguntar: "Padre, não existem apenas dois caminhos na vida de uma pessoa: monaquismo ou casamento?" Ai de nós se assim fosse. Por exemplo, se uma pessoa fica sem um casal, é preciso agora forçá-la a entrar no mosteiro, porque ela não se casou? E se ele não quiser viver em um mosteiro? [...] O principal é santificar o lugar onde se está. Pois onde existe humildade que é a base, existe a graça de Deus. E se você não tem humildade e a graça de Deus, então quem quer que você se torne, seja um monge, patriarca, homem de família ou qualquer outra coisa – nada vai funcionar, porque em sua vida não há verdadeiro propósito e significado. A presença Deus reside precisamente no coração do homem.

Pravoslavie. Metropolita Atanásio de Limassol - Amor no Casamento. Pensamentos sobre as palavras de noivado. Fonte:  https://pravoslavie.ru/121051.html

Fazendo o bem que se pode fazer

 Pe. Stephen Freeman

São João Batista enfrentou uma pergunta difícil. Soldados vieram até ele (não está claro que tipo de soldados eram). Somos informados o seguinte: "E nós, que devemos fazer? Respondeu-lhes: Não pratiqueis violência nem defraudeis a ninguém, e contentai-vos com o vosso soldo" [Lucas 3: 14]. A implicação de sua resposta é que a extorsão e a brutalidade eram uma prática comum. Certamente era usual em batalhas “saquear” uma cidade, e se envolver em terríveis atos de brutalidade. A resposta de São João Batista é bastante simples.

A dominação do mundo por Roma veio com um preço: impostos – muitos deles. Esses impostos não foram usados ​​para o bem público, construção de estradas, proteção policial e afins. Eles enriqueceram a César e apoiaram um projeto militar em constante expansão. Cristo disse, segurando uma moeda com a imagem de César: “Dê a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. É uma resposta que gerou 20 séculos de perguntas sem respostas.

O terreno comum dentro da resposta de João e a de Cristo é o quão limitadas são em seu escopo. Nenhum deles apresenta uma teoria abrangente da história ou de arranjos cívicos. Eles se limitam à “coisa à mão”.

Os hábitos mentais da cultura contemporânea foram nutridos por teorias abstratas. Uma simples questão de assistência médica não atendida tem pelo menos a mesma probabilidade de ser encontrada com explicações do setor público e privado com a ajuda médica real. Na verdade, é mais do que provável que essas perguntas sejam sobre alguém do outro lado do país, e não sobre seu vizinho da rua.

A vida abstrata é um tormento para a alma.

Somos criados como seres encarnados: corpos animados com gosto e toque. Deus se dá a nós em termos muito imediatos: pão, vinho, água, óleo. A ortodoxia nos ensina que um ícone é melhor que a imaginação. Não podemos beijar imaginações. Nossos pensamentos abstratos sobre coisas que parecem importar sem dúvida são equivalentes a sonhos. Vagamos por eles, adquirindo opiniões apaixonadas que procuram nos prender a essas noções etéreas. Presos com raiva e inveja, nos encontramos distraídos. Um dia se passa e não fizemos nada, exceto entregar nossas almas a tais apegos.

Voltemo-nos para Cristo e nos perguntemos: “E nós, o que devemos fazer?”

A resposta, penso eu, é simples e imediata: faça o bem que está ao alcance.

Deus continuamente coloca diante de nós a oportunidade de fazer o bem. Seja contemplação, trabalho ou lazer, mostrando misericórdia ou orando. O bem é sempre possível. Dar atenção ao que quer que seja ao bem mais próximo nos permite evitar distrações e aliviar o tormento de nossas almas.

Ultimamente me perguntam inúmeras vezes se acho que os cristãos devem votar. Eu não tenho pensamentos sobre a questão do “deveria”. No entanto, acho que votar pode ser uma coisa boa que está “à mão”. Então deve ser feito quando estiver “à mão”, isto é, cerca de uma vez por ano em média. À medida que as pessoas ficam presas no redemoinho de paixões políticas, elas “votam” muitas vezes ao dia sem nenhum efeito. Nada mais é do que uma fantasia e uma distração, uma conversa que é um exercício de futilidade.

Quando as 55 máximas de Pe. Thomas Hopko apareceram pela primeira vez, fiquei impressionado com a consistência com que apontavam para o imediato, ao pequeno, ao oculto. Relendo-os, encontrei vários deles que valem a pena considerar a esse respeito:

- Seja uma pessoa comum, da raça humana.

- Seja educado com todos, em primeiro lugar, com os membros da família.

- Seja fiel nas pequenas coisas.

- Faça o seu trabalho, então esqueça.

- Seja simples, escondido, quieto e pequeno.

- Pense e fale sobre coisas não mais do que o necessário.

- Fuja da imaginação, da fantasia, da análise, da descoberta das coisas.

- Não tente convencer ninguém de nada.

- Não tenha expectativas, exceto de ser ferozmente tentado ao seu último suspiro.

Incluí a última dessas advertências pelo fato de que uma existência tão imediata é estranhamente difícil em nossos tempos. Suspeito que nossa vida distraída e existência de fantasia não estão apenas cheias de paixões, mas também de demônios. Como não poderia ser? É sempre um conselho sábio evitar as assombrações dos demônios. Se, em seu dia, você achar difícil se afastar das distrações e voltar para o bem que está à mão, saiba que encontrou a luta espiritual daquele dia, a linha de frente da batalha e aquele único lugar onde sua presença e suas orações são mais necessárias.

Os anjos e os santos vão encontrá-lo lá.

Pe. Stephen Freeman: Glory to God for All Things - Glória a Deus por todas as coisas. Disponivel em: https://blogs.ancientfaith.com/glory2godforallthings/2020/08/12/doing-the-good-you-can-do/