domingo, 21 de janeiro de 2024

Três Períodos da Vida Espiritual

Sobre a concessão da graça, sua retirada e recuperação

Por Arquimandrita Zacarias



Arquimandrita Zacarias é aluno do famoso asceta ortodoxo de piedade Arquimandrita Sofrônio, um sistematizador de suas idéias e um continuador de seus ensinamentos. E o Arquimandrita Sofrônio, por sua vez, estudou com São Siluane de Athos. Assim, através desta cadeia de testemunhos de santidade, chega até nós a sabedoria da ciência da salvação da alma.

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"A vida espiritual é como uma esfera”, dizia frequentemente o Padre Sofrônio. Assim como cada ponto da superfície da esfera nos coloca em contato com toda a esfera, exatamente da mesma forma, cada virtude que cultivamos nos torna participantes da plenitude da graça vivificante de Deus. Cada encontro com Deus, cada toque Dele em nosso coração nos dá ao mesmo tempo purificação, iluminação e deificação, e podemos aceitar plenamente esses dons mesmo no início de nossa vida Nele. O Padre Sofrônio diz que algumas pessoas recebem a primeira graça na medida perfeita dos santos, mesmo antes de começarem a lutar com a sua natureza e paixões decaídas. O ancião chama esta graça de graça pascal, porque à sua luz nos é revelado um certo modo de vida, no qual participamos dos frutos de cada virtude divina.

Em geral, quando falava da vida espiritual, o Padre Sofrônio tinha o cuidado de não formular esquemas ou traçar sistemas, sabendo por experiência que as experiências espirituais não podem ser delineadas pelos estreitos limites da lógica humana, e cada pessoa tem o seu próprio caminho para Deus, de acordo com seu desejo de perfeição. Mas ainda assim, por vezes o Padre Sofrônio recorreu a certas imagens e modelos para melhor ilustrar as suas ideias sobre determinados temas espirituais. Assim, percebendo que certos fenômenos se repetem na vida das pessoas ao longo dos séculos, ele dividiu a vida espiritual em três estágios ou períodos distintos.

A primeira etapa é a visitação do Espírito Santo, quando uma pessoa faz uma aliança com Deus. A segunda é uma tarefa longa e difícil depois que o Senhor tira de nós Sua graça, e a última é a aquisição novamente e para sempre da graça da salvação. O Ancião disse muitas vezes que esta jornada espiritual de três estágios foi prefigurada no Antigo Testamento na vida do povo de Deus, Israel. A primeira vez que Deus visitou os judeus foi quando lhes deu a graça de passar pelo Mar Vermelho após o êxodo do Egito. Depois seguiram-se 40 anos de provações e sofrimento no deserto, quando o Senhor retirou deles a Sua graça. Finalmente, a graça voltou e eles herdaram a terra prometida.

O Padre Sofrônio destacou estes três períodos principalmente para chamar a atenção para o segundo. Ele enfatizou a necessidade de uma compreensão correta deste período, bem como [a necessidade de] uma atitude mental apropriada, sem a qual não seremos capazes de experimentar de forma inteligente e proveitosa o retiro da graça Divina. O Ancião quis encorajar-nos a procurar constantemente formas de transformar este tempo de provação num evento espiritual genuíno, a olhar para ele [o tempo] como um presente de Deus para nós, e não como algo que gera desespero, e assim ter cuidado com a tentação destrutiva da acídia. Na realidade, a pessoa experimenta o retrocesso da graça como morte espiritual, um verdadeiro vazio ontológico. Cada vez que falava sobre isto, a principal preocupação do Padre era como transformar esta morte, este estado de deserto espiritual, na vida imperecível de Deus.

O ancião enfatizou o fato de que uma pessoa espiritual, uma pessoa perfeita, passa por todos esses três períodos até o fim. Tendo recuperado a graça da salvação no terceiro período, tal pessoa pode agora ajudar sua própria espécie neste caminho de façanhas, pois adquiriu inteligência espiritual e, segundo a palavra do santo Apóstolo Paulo, não pode ser julgado por ninguém, porque é guiado pelo Espírito de Deus. Como diz o Padre Sofrônio, aquele que conseguiu revelar o seu princípio hipostático, que se tornou pessoa, é capaz de julgar corretamente qualquer experiência e vivência na vida espiritual, conhecendo o segredo do caminho de salvação de cada indivíduo.

Assim, o caminho de cada cristão para a perfeição, para a aquisição da semelhança com Deus, começa com uma visita à primeira graça. Todos nós experimentamos a graça do primeiro período, seja como crianças no Santo Batismo, ou mais tarde, conscientemente, como monges, na tonsura monástica, ou como sacerdotes na ordenação, ou simplesmente no ato do nosso arrependimento, quando voltamos ao seio da Igreja. Porém, todos nós perdemos esta graça maravilhosa, estando na vaidade deste mundo.

Mas como podemos experimentar este primeiro toque de Deus no nosso coração, o primeiro período de graça? Na Sua graça e misericórdia inefáveis, Deus olha constantemente para o homem como alvo das Suas flechas, “visitando-o todas as manhãs” (cf. Jó 7, 18), como diz o justo Jó. O Senhor fixa o olhar na Sua criação para ver se encontra em sua alma algum traço de favor, alguma pequena lacuna, e espera o momento em que uma pessoa se volte para Ele com um pouco de compreensão e humildade para entrar e habitar em seu coração. Deus espera incansavelmente pelo homem, batendo à porta do seu coração: "Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele comigo" (Apocalipse 3:20). Desta forma, assim que uma pessoa demonstra um pouco de humildade e gratidão, o Senhor penetra em sua alma, visitando-a abundantemente com Sua graça, renovando sua vida e reavivando-a espiritualmente.

Segundo Padre Sofrônio, a maneira de abrandar o coração e enchê-lo de gratidão e humildade diante do Senhor, para que sejamos capazes de aceitar a graça divina, é pensar no plano de Deus para o homem. Nas Sagradas Escrituras lemos que Deus concebeu o homem antes da criação do mundo e o destinou à vida eterna, o que significa que o homem já estava desde o início no plano eterno de Deus, no plano do seu Criador. A própria maneira como ele foi chamado à existência prova sua grandeza. Deus o criou à Sua imagem e semelhança, direta e pessoalmente, ao contrário de outras criaturas, que nasceram somente através da Sua palavra. O Senhor Deus tirou o pó da terra - com Suas próprias mãos - e criou o homem, soprando no pó o fôlego da vida. O Padre Sofrônio disse muitas vezes que Deus de alguma forma se repetiu no ato de criar o homem e colocou na sua natureza o poder de receber a plenitude da vida espiritual: “Ele não criou nada inferior a Si mesmo” [1].

Assim, de toda a obra salvadora de Deus vemos que o homem na graça de Sua salvação é verdadeiramente grande, segundo o plano do Criador, e o seu anúncio está repleto de grandeza. Quando uma pessoa se afastava desta honra, diz o Santo Apóstolo Paulo, Deus não a abandona e continua a visitá-la muitas vezes, e de diversas maneiras todos os dias de sua vida. Na verdade, Deus espera por uma pessoa, procurando qualquer motivo para ter misericórdia e salvá-la. O propósito de Sua busca é o coração profundo do homem, e seu apelo é o presente do Seu favor, que as Escrituras chamam de primeiro amor (Ap 2: 4). Na verdade, Deus está constantemente nos chamando. Se hoje vocês ouvem a Sua voz, não endureçam o coração e saiam ao seu encontro.

A graça do primeiro anúncio faz muitas mudanças no coração de uma pessoa e revela-lhe o modo de vida divino. A nossa primeira unidade com Deus, a aliança que fazemos com Ele quando recebemos a primeira graça, enche o nosso coração de alegria, de consolação divina e de sentimento de Deus. Padre Sofrônio chama isso de alegria pascal. Durante este período, o Senhor atende rapidamente qualquer petição que Lhe submetemos; não podemos desistir da oração, o nosso coração reza incessantemente, mesmo durante o sono; É fácil amarmos o próximo, acreditarmos em Deus, permanecermos acordados. São Siluane diz que quem ama a Deus, nunca pode esquecê-lo e constantemente se lembra dele e ora a ele, pois o próprio Deus fez uma aliança com o homem e o homem com Deus. Este primeiro período de vida espiritual, é verdadeiramente maravilhoso e cheio de inspiração, mas a sua graça é um dom imerecido, confiado a todos os que demonstram a mais ligeira inclinação de humildade do coração[...] Significando que o dom de Deus não pertence ao homem, mas é antes uma riqueza injusta.

O Evangelho de Lucas diz: "Se você não foi fiel naquilo que é dos outros, quem lhe dará o que é seu?" (Lucas 16:12). Interpretando esta parábola evangélica, Padre Sofrônio mostra que a primeira graça nos é dada gratuitamente, como uma espécie de capital espiritual, pelo qual não trabalhamos e que não merecemos. Porém, se mostrarmos que somos fiéis às coisas de Deus, estando dispostos a investir esse capital, a cultivar esse talento, então o Senhor nos confiará como se fosse nossa propriedade. Se honrarmos e valorizarmos este dom, Deus acabará por entregá-lo a nós como uma posse eterna. O Senhor nos dará o que é nosso.

Quão doces são os dias do nosso primeiro amor a Deus, quando fazemos facilmente tudo que Lhe agrada! É como se víssemos o Senhor dentro de nós mesmos e, porque O vemos, podemos acreditar Nele e segui-Lo. Os cristãos podem verdadeiramente confessar que viram a Deus e O conhecem, embora isto seja apenas parcialmente verdade. Quando aceitamos a primeira graça, o Senhor começa a pintar os primeiros traços da Sua imagem em nosso coração. Também ouvimos Sua voz quando Sua palavra toca nosso coração e renova nosso espírito, mas O vemos e O conhecemos apenas em parte. O véu da carne só será removido quando entrarmos na vida eterna. Então a visão de Deus se tornará pura e clara, e assim o conhecimento Dele, que agora temos apenas em parte, será melhorado. Se, durante esta vida transitória, tentarmos olhar constantemente para a imagem de Cristo em nossos corações, então, quando a janela da eternidade se abrir, nós O veremos em toda a Sua plenitude. Se permanecermos fechados à Sua graça nesta vida, então no momento da morte se abrirá outra janela, sobre a qual prefiro calar-me.

O primeiro período da vida espiritual, porém, é de curta duração, pois a pessoa não consegue manter a graça e certamente a perderá mais cedo ou mais tarde. Embora o Padre Sofrônio normalmente não estabelecesse limites para as experiências espirituais, ele notou, no entanto, que o período da primeira graça pode variar [...] 

Começa então a façanha do segundo período. Agora, Deus nos permite passar por severas tentações e provações, dando-nos assim a oportunidade de provar nossa fidelidade a Ele em circunstâncias adversas e, de mostrar nossa gratidão pelos maravilhosos dons de Sua graça, para que possamos ser considerados dignos da plenitude da Sua graça, da vida espiritual, parte integrante da nossa herança.

Padre Sofrônio diz que a divinização de uma pessoa ocorre de acordo com a profundidade e o zelo com que ela experimentou o abandono de Deus, o retiro de Sua graça. Segundo o mais velho, a plenitude da exaustão precede a plenitude da perfeição. Quando a graça retrocede, é muito importante saber o que está escondido por trás deste período de provação, para compreender e utilizar o seu enorme potencial espiritual para atrair os dons de Deus. À luz desta compreensão, o tempo da prova do Senhor torna-se inexprimivelmente criativo, servindo, no entanto, de fundamento sobre o qual se baseia a salvação do homem. Mas para não aceitarmos a graça de Deus em vão, devemos estudar com atenção como ela chega e por que motivo nos deixa - esta é uma verdadeira ciência que nos ensina a recolher e armazenar a graça em nossos corações. Padre Sofrônio enfatiza que quem não viveu a experiência de ser abandonado por Deus não só não é perfeito, como nem sequer está entre os crentes.

De uma forma ou de outra, certamente devemos passar pelas provações deste período, e há dois caminhos que podemos trilhar. O primeiro caminho é o correto e, portanto, agradável a Deus; através dele ganhamos Cristo e, com Ele, a eternidade. O outro é o caminho da ociosidade, da negligência, da obstinação e do orgulho. A graça retrocede e chega um momento em que a pessoa não consegue mais suportar a dor. A contemplação da própria pobreza espiritual o convence de que fora do Deus vivo, do Deus do amor, tudo não tem sentido, pois traz a marca da morte.

Ao procurar uma saída para esta situação desesperadora, ele pode escolher um dos dois caminhos seguintes: o primeiro caminho é culpar Deus e rebelar-se. São Siluane foi tentado por este espírito quando disse: “É impossível curvar-se a Deus”. E sabemos o que se seguiu - ele foi lançado nas profundezas da escuridão e permaneceu por uma hora neste terrível abismo. Quem é a pessoa para falar assim com Deus? Quão perigosa é essa insolência! À noite, durante as Vésperas, São Siluane, no entanto, encontrou dentro de si forças para invocar o nome do Senhor e foi libertado. A profundidade do desespero foi transformada numa visão da glória inefável de Cristo.

Tentando nos livrar da dor, podemos, porém, escolher outro caminho - nos contentaremos com os sucessos alcançados, trataremos as coisas com leviandade e assim nos tornaremos descuidados. Nesse estado, podemos facilmente ser vítimas da tentação e, nosso coração começa a endurecer. Um caminho razoável para sair deste vazio interior nos é revelado pelo exemplo de Abraão: confiar em Deus quando, humanamente falando, já não há esperança, e humilhar-se sob o seu braço forte. Como diz o santo apóstolo Paulo, devemos confiar em Deus, que ressuscita os mortos, até que Ele nos ressuscite no devido tempo.

Padre Sofrônio mostra que a visitação da primeira graça desperta em nós o princípio hipostático, ou seja, a capacidade do nosso ser de acomodar a graça de Deus e adquirir semelhança com Ele. Sob a influência desta graça, também nos é dada uma amostra do estado sobrenatural em que o homem reside através do dom do Espírito Santo, transmitido a todo o seu ser. Por exemplo, quando Deus nos dá um pouco de contrição de coração, sentimos que temos poder sobre a nossa natureza, que podemos distinguir e subordinar cada pensamento e cada movimento do coração à abstinência, e quanto mais aceitamos a graça, mais perfeitamente dominamos nossa natureza. Em outras palavras, a renovação de uma pessoa começa simultaneamente com o despertar nela do princípio hipostático.

Embora a princípio o efeito da graça seja muito forte, no entanto a nossa natureza não se submete à grande e perfeita vontade de Deus. A graça atrai a nossa mente para dentro e nos revela as grandes verdades da vida espiritual, mas isso não significa que elas se tornem imediatamente nossas, porque ainda não somos capazes de assimilá-las. Ainda somos criaturas caídas, a nossa natureza está dividida e esta discórdia interna torna-se óbvia juntamente com a perda da graça. A parte do nosso ser em que o processo de renovação espiritual começou segue o princípio hipostático, enquanto a outra parte, o velho, segue na direção oposta.

A visão deste conflito interno nos deixa perplexos e nos faz exclamar: "Como me sentia bem antes e como era forte a oração! O que aconteceu comigo?" Não entendemos que a nossa natureza ainda está sujeita à velha lei. Porém, se fizermos tudo ao nosso alcance para permanecermos de pé, como diz o apóstolo, nossa natureza e vontade estarão harmonizadas com a nova lei da graça despertada em nós pelo princípio hipostático. O crescimento dinâmico e gradual do princípio hipostático superará o fardo de nossa natureza, ainda não regenerada, e o mortal será absorvido pela vida, para que a vontade de Deus se estabeleça em nós como a única e verdadeira lei de nossa existência.

A luz da primeira graça revela a discórdia do nosso ser. Na confissão, o Padre Sofrônio nunca tentou atenuar este sentimento de discórdia na sua vida interior; pelo contrário, procurou até fortalecê-lo, sabendo que quem decidisse resistir a este estado de tensão espiritual voltaria todo o seu ser para Deus e, superando a prova, herdaria Sua graça. Essa discórdia interna pode nos acompanhar até o fim de nossas vidas, mas com o tempo o princípio hipostático ganhará cada vez mais poder sobre a nossa natureza, chegando ao ponto de controlar todo o nosso ser. Quanto à perfeição, ela é característica apenas dos santos, como explica o santo apóstolo Paulo aos tessalonicenses.

Em tempos de provação e aridez espiritual, recordar os momentos em que Deus nos visitou com a sua graça, dá força e ajuda a renovar a inspiração. Portanto, precisamos gravar bem em nossas mentes o que aprendemos enquanto a graça estava palpavelmente dentro de nós. Assim como os primeiros cristãos da Igreja de Éfeso foram admoestados pelos anjos a lembrarem-se de seu primeiro amor e de seus feitos anteriores (ver: Ap 2: 4), também nos cabe lembrar a beleza de nosso primeiro amor pelo Senhor, o aproximação de Deus e a ressurreição da nossa alma pela Sua graça.

Outra forma de renovar a inspiração é lembrar das palavras vivificantes dos nossos pais espirituais. Às vezes padre Sofrônio interrompia a leitura durante a refeição para fazer alguns esclarecimentos. Suas palavras foram tão doces que nos esquecemos completamente da comida que estava diante de nós, e as palavras do Evangelho soaram em nossos corações: “O homem não viverá só de pão, mas de toda palavra que sai da boca de Deus ”(Mateus 4:4).

Há muitas maneiras pelas quais nós, cristãos ortodoxos, podemos renovar a graça de Deus dentro de nós mesmos. Mencionamos, entre outras coisas: o Sacramento da Confissão, a Sagrada Liturgia, a invocação do santo nome de Cristo e a leitura das Sagradas Escrituras. Na verdade, tudo o que fazemos em Seu nome nos ajuda a recuperar a graça. Padre Sofrônio chama Cristo de “o desejo dos nossos corações”: “O verdadeiro cristão é aquele para quem Cristo se tornou a “terra dos desejos”, como cantamos no culto de oração à Mãe de Deus, aquele que busca o Senhor com uma sede insaciável e cumpre Seus mandamentos com zelo”. O Profeta Davi diz: “O caminho dos Teus mandamentos fluiu quando dilataste o meu coração” (Sl 118:32).

O zelo por Deus dá à pessoa força para superar todas as provações. Assim, precisamos absolutamente experimentar o abandono por Deus e provar a morte espiritual, porque só assim o nosso desejo por Deus e a determinação de seguir a Cristo serão testados. Será que a morte que nos ameaça se transformará numa fonte de vida ou acabará por nos destruir? Depende apenas de nós. Se, durante o segundo período, continuarmos a permanecer naquilo que aprendemos quando a graça estava conosco, então a nossa fé parecerá mais forte que a morte e conquistará o mundo, segundo a palavra de São João Evangelista.

Na verdade, a riqueza de bênçãos que este tempo de provação contém é infinita. Através de inúmeras quedas, revoltas e repetidas experiências de perda de graça, aprendemos a não nos desesperar quando quebrantados, porque sabemos que, em Sua grande misericórdia e amor, o nosso Deus é “fraco” e em breve se curvará ao nosso chamado. E quando estivermos melhores, nos humilharemos, pois aprendemos com a experiencia como é difícil manter tal estado.

O espírito de humildade renova o coração da pessoa, ao mesmo tempo que fortalece a alma e o corpo. A força mental e espiritual advém da humildade e da fé, mudando todo o nosso ser pela ação da graça. Dessa forma, nossa estrutura mental fica mais forte e ganhamos uma certa resiliência que nos ajuda a superar as tentações. Além disso, a alternância de momentos de graça e de aridez espiritual dota-nos do dom da prudência, ensinando-nos a distinguir entre o incriado eterno e o criado transitório, que pode nos acompanhar além-túmulo.

Mas, antes de tudo, este período de afastamento da graça é um impulso ao arrependimento, para penetrar mais profundamente nas profundezas dos destinos de Deus e examinar-nos à luz dos Seus mandamentos. Então leremos as Escrituras com entendimento e usaremos toda a sabedoria que Deus nos deu para encontrar maneiras de chegar diante Dele com novos pensamentos humildes e ternos, para que possamos nos aproximar Dele. Além disso, descobriremos a corrupção e as paixões enterradas profundamente dentro de nós, tal qual quando esvaziamos nossos bolsos virando-os do avesso, encontrando ali coisas esquecidas ou há muito escondidas. Da mesma forma, Deus vira o nosso coração do avesso para revelar a abominação escondida em suas profundezas. Afinal, carregamos sem perceber dentro de nós impulsos e desejos pecaminosos que não estão em harmonia com o plano original de Deus para o homem, e que se opõem ao nosso objetivo mais elevado - amar a Deus e ser como Ele em tudo.

Através do sofrimento, a pessoa aprende a falar com Deus de uma forma que Lhe agrada. A oração de quem enfrenta a morte se destaca absolutamente, pois fala do fundo da alma, mesmo que esteja privado do consolo e da ajuda da graça. Seja qual for a forma que assuma a ameaça de morte: doença, perseguição ou afastamento da graça divina, se encontrarmos forças para estar diante de Deus e confessar: “Glória a Ti, Senhor! Toda glória é devida a ti, e vergonha a mim por meus pecados e iniquidades”, então Deus garantirá que nossa fé Nele prevaleça.

À medida que tentamos transformar o fardo da aparente ausência de Deus em criação espiritual, isto é, numa conversa sempre nova, descobrimos novas formas de nos humilharmos. É como se um transformador estivesse trabalhando em nosso coração, transformando a energia de dor em energia de oração, o coração se toca e aprendemos a depositar toda a nossa confiança na energia Divina da consolação do Espírito Santo. Na verdade, o fogo das paixões só pode ser extinto pelo fogo mais forte da consolação divina, que o santo apóstolo Paulo chama de “consolação do amor divino”.

O espírito deste mundo tenta aliviar o nosso estresse espiritual, oferecendo-nos benefícios materiais temporários como consolo. Uma pessoa só é capaz de aceitar o caminho estreito do sofrimento quando o Santo Mestre, crucificado e que sofre constantemente neste mundo, toca a sua vida.

O segundo período da vida espiritual é, portanto, precioso porque dá à pessoa a experiência de estar condenada à morte. As dificuldades pelas quais ele passa agora, o purificam da tendência arrogante de se divinizar e de separá-lo de todas as coisas criadas, e a dor que acompanha essa transformação interna abre seu coração para aceitar a graça divina e o conhecimento dos mistérios da salvação. A sua alma aprendeu a permanecer constantemente na humildade e, como diz o Padre Sofrônio, a graça o amará e nunca o abandonará. São Silouan escreve: “Assim, toda a vida da alma aprende a humildade de Cristo, que enquanto não conter humildade, será constantemente atormentada por maus pensamentos, e a alma humilde encontra a paz e a tranquilidade que o Senhor fala".

Assim, a aquisição inalienável da graça novamente, a coroa dada pela luta travada no segundo período da vida espiritual, é concedida a uma pessoa quando ela convence a Deus pela fidelidade de seu coração de que deseja pertencer somente a Ele. Padre Sofrônio disse muitas vezes: “Todos os dias eu dizia a Deus: “Eu sou teu, salva-me”. Mas quem somos nós para dizer a Deus: “Eu sou teu”? Primeiro, devemos assegurar a Deus que pertencemos a Ele, e quando verdadeiramente lhe assegurarmos, ouviremos Sua voz nos dizendo: "Tu és meu filho, eu hoje te gerei." (Sl 2:7).

O terceiro período da vida espiritual é geralmente curto [...] mas, ao contrário do primeiro, é muito mais rico nas bênçãos de Deus. Suas características são o amor e a perseverança, bem como a paz profunda que acompanha a libertação das paixões. As feridas do segundo período, que recebemos ao bater nas rochas duras, nos ensinarão a ter cuidado para não nos ferirmos novamente, e assim seremos mais capazes de guardar o dom que nos foi confiado; porem, podemos perdê-lo, pois uma pessoa está sujeita a vacilações até o fim de sua vida.

Padre Sofrônio descreve o último período da vida espiritual como um período de tornar-se semelhante a Deus. O homem foi regenerado pela graça, e os mandamentos de Deus foram estabelecidos como a única lei do seu ser. Naturalmente, a plenitude da perfeição cristã não pode ser alcançada neste mundo. Aguardamos ansiosamente a ressurreição dos mortos e a vida do próximo século, como dizemos no Credo. Mas ainda assim a semente da ressurreição é plantada nesta vida, aqui e agora estabelecemos uma forte ligação com Cristo, uma ligação que continuará na vida por vir. Aqui e agora recebemos o penhor de uma herança futura e das primícias da vida eterna.

Para concluir, gostaria de recordar a palavra do Padre Sofrônio sobre a oração: “Nós, todos os filhos de Adão, precisamos passar por este fogo celeste, que queima as raízes das paixões mortais. Caso contrário, não veremos o fogo se transformando na luz de uma nova vida, porque em nosso estado decaído, a queima precede a iluminação. Portanto, agradeçamos ao Senhor pelo efeito purificador do Seu amor. Amém".

Notas:

[1] Sophrony (Sakharov), arquimandrita. Ver Deus como Ele é.


Três periodos da vida espiritial. Arquimandrita Zacarias. Texto original <https://pravoslavie.ru/91462.html>